Antes de começar precisaremos de uma abordagem jurídica-histórica da Doutrinadora Cláudia Lima Marques
1. A concepçâo tradicrional do contrato
Na ciência jurídica do século XIX, a autonomia de vontade era
a pedra angular do Direito.{4} A concepção de vínculo contratual desse
período está centrada na idéia de valor da vontade, como elemento
principal, como fonte única e como legitimação para o nascimento de
direitos e obrigações oriundas da relação jurídica contratual.{5} Como
afirma Gounot,{6} "da vontade livre tudo procede e à ela tudo se destina".
É a época do liberalismo na economia e do chamado voluntarismo
no direito. A função das leis referentes a contratos era, portanto,
somente a de proteger esta vontade criadora e de assegurar a realização
dos efeitos queridos pelos contraentes.{7} A tutela jurídica limita-se a
* (4) Veja os clássicos ensaios de Michel Villey, "Essor et décadence du
voluntarisme juridique" e de A. Rieg, "Le rôle de la volonté dans la
formation de l’acte juridique d’aprés les doctrines allemandes du XIX
siécle", ambos nos Archives de Philosophie du Droit, vol. 4, Paris, Sirey,
1957, pp. 87/98 e 126-132.
(5) Assim, os comparatistas alemães Zweigert/Koetz, p. 7; veja também o
recente Jacques Ghestin, "La notion de contrat", in Recueil Dalloz/Sirey,
1990, n. 23, p. 147.
(6) No original, "de la volonté libre tout procede, à elle tout aboutit", apud
Bessone, Natura Ideologica, p. 944.
(7) Relembre-se aqui a noção clássica de negócio jurídico, como declaração de
vontade dirigida a um fim, tutelando o direito tanto esta vontade como os
efeitos pretendidos pelas partes, veja a obra de Azevedo, pp. 6 e ss. (p. 37)
possibilitar a estruturação pelos indivíduos destas relações jurídicas
próprias assegurando uma teórica autonomia, igualdade e liberdade no
momento de Contratar, e desconsiderando por completo a situação
econômica e social dos contraentes.
Na concepção clássica, portanto, as regras contratuais deveriam
compor um quadro de normas supletivas, meramente interpretativas,
para permitir e assegurar a plena autonomia de vontade dos indivíduos,
assim como a liberdade contratual. Esta concepção voluntarista e liberal
influenciará as grandes codificações do Direito e repercutirá no
pensamento jurídico do Brasil, sendo aceita e positivada pelo Código
Civil Brasileiro de 1917.{8}
1.1 Características principais
Como primeira aproximação ao estudo da concepção tradicional
de contrato vamos examinar a definição do grande sistematizador do
século XIX, Friedrich Karl von Savigny, segundo a qual, o contrato é
a união de mais de um indivíduo para uma declaração de vontade em
consenso, através da qual se define a relação jurídica entre estes
("Vertrag ist die Vereiningung mehrerer zu einer übereinstimmenden
Willenserklärung, wodurch ihre Rechtsverhältnisse bestimmt werden"){9}.
Esta definição, em princípio simples, tem grande valor para a
nossa análise, pois nela já podemos encontrar os elementos básicos que
caracterizarão a concepção tradicional de contrato até os nossos dias:
(1) a vontade (2) do indivíduo (3) livre (4) definindo, criando direitos
e obrigações protegidos e reconhecidos pelo direito. Em outras pala-
vras, na teoria do direito, a concepção clássica de contrato está
diretamente ligada à doutrina da autonomia da vontade e ao seu
reflexo{10} mais importante, qual seja, o dogma da liberdade contratual.
* (8) Assim Couto e Silva, Perspectivas, p. 134.
(9) Apud Zweigert/Koetz, p. 6.
(10) Concordam Weil/Terré, p. 25, Rieg, p. 126, Larenz/AT, p. 35, Laufs, p. 255,
Raizer, p. 12, Almeida Costa, p. 77, Reale/Nova Fase, p. 87, Couto e Silva,
RT 655, p. 7, Gomes/Transformações, p. 9, porém, para os comparatistas
Zweigert/Koetz, p. 9, Koendgen, p. 119 e Kramer/Muenchener, p. 1090, os
dogmas teriam o mesmo nível, sendo a característica mais importante a
liberdade contratual, a qual não seria simples "reflexo" ou elemento do dogma
da autonomia da vontade. A tradição brasileira e francesa é a que seguimos. (p. 38)
Para esta concepção, portanto, a vontade dos contraentes, decla-
rada ou interna, é o elemento principal do contrato. A vontade
representa não só a genesis, como também a legitimação do contrato{11}
e de seu poder vinculante e obrigatório.
Tendo em vista o papel decisivo da vontade a doutrina, a
legislação e a jurisprudência, influenciadas por esta concepção, irão
concentrar seus esforços no problema da realização dessa autonomia
da vontade;{12} somente a vontade livre e real, isenta de vícios ou
defeitos, pode dar origem a um contrato válido, fonte de obrigações e
de direitos.
Nesse sentido, a função da ciência do direito será a de proteger
a vontade criadora e de assegurar a realização dos efeitos queridos pelas
partes contratantes. A tutela jurídica limita-se, nesta época, portanto,
a possibilitar a estruturação pelos indivíduos de relações jurídicas
próprias através dos contratos,{13} desinteressando-se totalmente pela
situação econômica e social dos contraentes{14} e pressupondo a existên-
cia de uma igualdade e liberdade no momento de contrair a obrigação.
Esta concepção clássica de contrato, individualista, liberal e
centrada na idéia de valor da vontade, influenciará o pensamento
brasileiro,{15} sendo aceita pelo Código Civil de 1917.{16}
Mas a concepção clássica de contrato não é fruto de um único
momento histórico, ao contrário, ela representa o ponto culminante
e aglutinador da evolução teórica do direito após a idade média e da
evolução social e política ocorrida nos séculos XVIII e XIX, com
a revolução francesa, o nacionalismo crescente e o liberalismo
econômico. A compreensão desta teoria clássica contratual exige,
portanto, que se analise igualmente as origens dessa concepção,
sempre tendo em vista o reflexo que estas influências teóricas e sociais
tiveram no nascimento da doutrina da autonomia da vontade (1.2).
* (11) Assim, Kramer/Muenchener, p. 1091 (ver § 145, 3, b).
(12) Concordam Zweigert/Koetz, p. 8.
(13) Nesse sentido Raizer, p. 12.
(14) Assim, o mestre de Porto Alegre, Couto e Silva/Perspectiva, p. 134.
(15) Veja sobre a repercussão do pensamento Filosófico-jurídico europeu no
pensamento jurídico brasileiro, a lição de Reale, Nova Fase, p. 219.
(16) Assim, Pontes de Miranda/Fontes, p. 377 e Couto e Silva/Perspectiva,
p. 137. (p. 39)
É necessário, igualmente, que se identifique que conseqüências
jurídicas se originaram, nos ordenamentos jurídicos de quase todos
os povos europeus e também entre nós, da aceitação desta concepção
clássica de contrato (1.3).
1.2 Origens da concepção tradicional de contrato
A concepção tradicional de contrato, segundo frisamos, está
intimamente ligada a idéia de autonomia da vontade, eis porque é
possível identificar suas origens analisando a evolução deste dogma
basilar do direito. Segundo doutrinadores franceses,{17} quatro são as
principais origens da doutrina da autonomia da vontade no direito:
a) O direito canônico - O direito canônico contribuiu decisiva-
mente para a formação da doutrina da autonomia da vontade e,
portanto, para a visão clássica do contrato, ao defender a validade e
a força obrigatória da promessa por ela mesma, libertando o direito
do formalismo exagerado e da solenidade típicos da regra romana.{18}
O simples pacto faz nascer a obrigação jurídica, como fruto do ato
do homem. É o direito canônico que vulgariza a fórmula ex nudo pacto
nascitur. Para os canonistas, a palavra dada conscientemente criava
uma obrigação de caráter moral e jurídico para o indivíduo. Assim,
livre do formalismo excessivo do direito romano, o contrato se
estabelece como um instrumento abstrato e como uma categoria
jurídica.{19}
* (17) Assim Weill/Terré, p. 50 sobre as origens da doutrina da autonomia da
vontade.
(18) Segundo Puig Peña, p. 2, o pactum ou conventio, no direito romano,
significava um simples acordo que por si só não gerava uma actio, nem
vínculo obrigacional, sendo necessário um plus (causa civilis) para se
transformar em contractus: a forma especial, ou mais tarde, a execução por
uma das partes. De outro lado, se Roma possuía um conceito mais objetivo
de contrato e diferenciado do atual, isto não impede que alguns doutrina-
dores visualizem na relação de forças entre o disposto na lex e as
instituições do ius (incluindo aqui os atos jurídicos) um conceito de
autonomia privada bastante semelhante ao atual, como espaço reservado
para a auto-determinação dos indivíduos, veja a controvérsia em Frezza, p.
481 e Carressi, p. 265.
(19) Assim concluem também Mazeaud/Mazeaud/Chabas, p. 53. (p. 40)
b) A teoria do direito natural - É na teoria do direito natural que
encontramos, porém, a base teórico-filosófica mais importante na
formação dos dogmas da concepção clássica: a autonomia da vontade
e a liberdade contratual. Como ensina Reale,{20} à luz do Direito Natural,
especialmente devido às idéias de Kant, a pessoa humana tornou-se um
ente de razão, uma fonte fundamental do direito, pois, é através de seu
agir, de sua vontade, que a expressão jurídica se realiza. Kant{21} chegaria
mesmo a afirmar que a autonomia da vontade seria "o único princípio
de todas as leis morais e dos deveres que lhes correspondem". Estas
idéias de Kant tiveram muita influência na Alemanha à época da
sistematização do direito e serão uma das bases da Willenstheorie,{22}
para a qual a vontade interna, manifestada sem vícios, é a verdadeira
fonte do contrato, a fonte que legitima os direitos e obrigações daí
resultantes, os quais devem ser reconhecidos e protegidos pelo direito.
Para Wieacker,{23} os pandectistas do século XIX, ao sistematizarem
a ciência do direito e os conceitos jurídicos, basearam-se na ética da
liberdade - e do dever de Kant. Para este famoso historiador do direito,
é na ideologia do jusnaturalismo que vamos encontrar a fonte do que
ele chama "paixão burguesa pela liberdade". Efetivamente, é no direito
natural que encontramos a base do dogma da liberdade contratual, uma
vez que a liberdade de contratar seria uma das liberdades naturais do
homem, liberdade esta que só poderia ser restringida pela vontade
(Wille) do próprio homem.{24} O próprio Kant{25} afirmada que as pessoas
* (20) Reale/Nova, p. 61.
(21) Kant, "Kritik der Praktischen Vernunft" apud Reale/Nova, p. 60.
(22) Assim concluem tb. Zweigert/Koetz, p. 8.
(23) Wieacker, p. 280.
(24) Concordam igualmente Zweigert/Koetz, p. 8, em interessante estudo. Ernst
Wolf relembra que o § 823 do BGB ao citar os bens e valores, os quais
lesados originam a pretensão de ressarcimento por ato ilícito no direito
alemão, inclui "a liberdade", como interesse e direito natural do homem.
Wolf, Ernst, "Vertragsfreiheit - eine Illusion?", FSKeller, p. 360.
(25) Kant/Grundlegung zur Methaphysik der Sitten, p. 375: "Man sah den
Menschen Durch seine Pflicht an Gesetze gebunden, man liess es sich aber
nicht einfailen, dass er nur seiner eigenen und dennoch allgemeinen
Gesetsgebung unterworíen sei, und dass er nur verbunden sei, seinen
eigenen, den Naturzweck nach aber allgemeinen gesetzgebenden Willen
gemaess zu handeln". (p. 41)
só podem se submeter às leis que elas mesmas se dão, no caso, o
contrato. Wieacker chega a considerar o jusnaturalismo, com as
influências por ele recebidas da tradição católica, como a força mais
poderosa no desenvolvimento do direito, depois do Corpus Iuris
Civile.{26} Mas não só as teorias ético-jurídicas tiveram influência na
formação de concepção clássica de contrato, também as teorias de
ordem política e econômica ajudaram a moldá-la.
c) Teorias de ordem política e a revolução francesa - Já se afirmou
que o direito moderno nasce com a Revolução Francesa,{27} neste sentido
queremos destacar a influência que a famosa teoria do contrato social
exerceu sobre o direito contratual. Esta teoria de Rousseau lança a idéia
do contrato como base da sociedade, sociedade politicamente organi-
zada, isto é, o Estado. Aqui vamos reencontrar o dogma da vontade livre
do homem, pois, segundo esta revolucionária teoria francesa, a auto-
ridade estatal tem o seu fundamento no consentimento dos sujeitos de
direito, isto é, os cidadãos. Suas vontades se unem (em contrato) para
formar a sociedade, o Estado como hoje o conhecemos. Nas palavras
célebres de Rousseau: "Já que nenhum homem possui uma autoridade
natural sobre o seu semelhante, e uma vez que a força não produz
nenhum direito, restam, portanto, os contratos (as convenções) como
base de toda a autoridade legítima no meio dos homens".{28}
Note-se que também aqui está presente a idéia de renúncia à parte
da liberdade individual. É necessário renunciar através do contrato
social, mas a própria renúncia é expressão do valor da vontade. O
contrato é, assim, não só a fonte das obrigações entre indivíduos, ele
é a base de toda a autoridade. Mesmo o Estado retira sua autoridade
de um contrato, logo a própria lei estatal encontra aí sua base. O
contrato não obriga porque assim estabeleceu o direito, é o direito que
vale porque deriva de um contrato. O contrato, tornando-se um a priori
do direito, revela possuir uma base outra, uma legitimidade essencial
* (26) Wieacker, p. 297.
(27) Assim Reale/Nova, p. 73.
(28) Nas palavras originais, Rousseau, p. 45, L. I., Cap. IV: "puisque aucun
homme n’a une autorité naturelle sur son semblable, et puisque la force ne
produit aucun droit, restent donc les conventions pour base de toute autorité
légitime parmi les hommes". (p. 42)
e autônoma em relação às normas: a vontade dos cidadãos.{29} A teoria
do contrato social conduz, portanto, à idéia de importância da vontade
do homem.{30}
Destaque-se, por fim, a maior realização da Revolução Francesa
no campo do Direito Civil, o Código Civil Francês de 1804. O Code
Civil, elaborado na época napoleônica, conjuga as influências indivi-
dualistas e voluntaristas da época com as idéias do Direito Natural
Moderno: tendo, segundo Reale,{31} remota fonte hobbesiana. Marco da
história do direito, esta codificação, que influenciada grande parte dos
ordenamentos jurídicos do mundo, coloca como valor supremo de seu
sistema contratual a autonomia da vontade, afirmando, em seu art.
1.134, que as convenções legalmente formadas têm lugar das leis para
aqueles que as fizeram.{32} Esta visão extremamente voluntarista do
direito contratual influenciará várias codificações, inclusive a nossa,
moldando para sempre a concepção clássica de contrato.
d) Teorias econômicas e o Liberalismo - As teorias econômicas
do século XVIII, em resposta ao corporativismo e as limitações
impostas pela igreja católica, propõem a liberdade como panacéia
universal.{33} Para estas teorias, é basicamente necessária a livre movi-
mentação das riquezas na sociedade.{34}
Uma vez que o contrato é o instrumento colocado à disposição
pelo direito para que esta movimentação aconteça, defendem a neces-
* (29) Assim Puig Peña, p. 3. Já o mestre alemão Coing/Rechtsphilosophie, p. 33,
observa que exatamente neste momento, o homem (Menschen) volta a ser
visto como cidadão (Bürger) e o direito dos homens (direito natural) vai
cedendo espaço para o direito dos cidadãos (direito civil ou bürgerliches
Recht, em alemão), direito dos iguais na sociedade civil.
(30) Assim Weil/Terré, p. 51.
(31) Reale, Nova Fase, p. 87 e Villey, p. 683.
(32) No original: "Art. 1.134 - Les conventions légalment formées tiennet lieu
de li à ceux qui les ont faites", nossa tradução no texto foi influenciada por
aquela de Reale, Nova Fase, p. 90, veja também sobre o sistema contratual
do Code Civil, Morin, Révolte, p. 13 a 17.
(33) Kramer/Krise, p. 22.
(34) Veja Amaral, Autonomia, p. 26 e tb. o excelente Atiyah, p. 277, o qual
destaca a importância da idéia de propriedade privada, a possibilitar essa
liberdade de trocas de mercadorias na sociedade. (p. 43)
sidade da liberdade contratual. Acreditava-se, na época, que o contrato
traria em si uma natural eqüidade, proporcionaria a harmonia social e
econômica, se fosse assegurada a liberdade contratual. O contrato seria
justo e eqüitativo por sua própria natureza. Na expressão da época: "Qui
dit contractuelle, dit juste".{35}
O modelo do synalagma serve como base para esta visão econô-
mica do contrato, a qual reafirmará ser este precipuamente um
instrumento de troca do "inútil" pelo "útil", visando a realização de
interesses individuais daqueles que contrataram. Note-se aqui uma
dupla função econômica do contrato: instrumentalizar a livre circulação
das riquezas na sociedade e ao mesmo tempo indicar o valor de
mercado de cada objeto cedido (sua nova "utilidade"). Evolui-se, assim,
para considerar o contrato menos um instrumento de troca de objetos,
mas sim uma troca de valores.{36}
No século XIX, auge do Liberalismo, do chamado Estado Moder-
no, coube a teoria do direito dar forma conceitual ao individualismo
econômico da época, criando a concepção tradicional de contrato,{37} em
consonância com os imperativos da liberdade individual e principal-
mente do dogma máximo da autonomia da vontade.
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