sábado, 16 de julho de 2011

Por onde começar no estudo dos contratos

Antes de começar precisaremos de uma abordagem jurídica-histórica da Doutrinadora Cláudia Lima Marques

1. A concepçâo tradicrional do contrato

Na ciência jurídica do século XIX, a autonomia de vontade era

a pedra angular do Direito.{4} A concepção de vínculo contratual desse

período está centrada na idéia de valor da vontade, como elemento

principal, como fonte única e como legitimação para o nascimento de

direitos e obrigações oriundas da relação jurídica contratual.{5} Como

afirma Gounot,{6} "da vontade livre tudo procede e à ela tudo se destina".

É a época do liberalismo na economia e do chamado voluntarismo

no direito. A função das leis referentes a contratos era, portanto,

somente a de proteger esta vontade criadora e de assegurar a realização

dos efeitos queridos pelos contraentes.{7} A tutela jurídica limita-se a

* (4) Veja os clássicos ensaios de Michel Villey, "Essor et décadence du

voluntarisme juridique" e de A. Rieg, "Le rôle de la volonté dans la

formation de l’acte juridique d’aprés les doctrines allemandes du XIX

siécle", ambos nos Archives de Philosophie du Droit, vol. 4, Paris, Sirey,

1957, pp. 87/98 e 126-132.

(5) Assim, os comparatistas alemães Zweigert/Koetz, p. 7; veja também o

recente Jacques Ghestin, "La notion de contrat", in Recueil Dalloz/Sirey,

1990, n. 23, p. 147.

(6) No original, "de la volonté libre tout procede, à elle tout aboutit", apud

Bessone, Natura Ideologica, p. 944.

(7) Relembre-se aqui a noção clássica de negócio jurídico, como declaração de

vontade dirigida a um fim, tutelando o direito tanto esta vontade como os

efeitos pretendidos pelas partes, veja a obra de Azevedo, pp. 6 e ss. (p. 37)

possibilitar a estruturação pelos indivíduos destas relações jurídicas

próprias assegurando uma teórica autonomia, igualdade e liberdade no

momento de Contratar, e desconsiderando por completo a situação

econômica e social dos contraentes.

Na concepção clássica, portanto, as regras contratuais deveriam

compor um quadro de normas supletivas, meramente interpretativas,

para permitir e assegurar a plena autonomia de vontade dos indivíduos,

assim como a liberdade contratual. Esta concepção voluntarista e liberal

influenciará as grandes codificações do Direito e repercutirá no

pensamento jurídico do Brasil, sendo aceita e positivada pelo Código

Civil Brasileiro de 1917.{8}

1.1 Características principais

Como primeira aproximação ao estudo da concepção tradicional

de contrato vamos examinar a definição do grande sistematizador do

século XIX, Friedrich Karl von Savigny, segundo a qual, o contrato é

a união de mais de um indivíduo para uma declaração de vontade em

consenso, através da qual se define a relação jurídica entre estes

("Vertrag ist die Vereiningung mehrerer zu einer übereinstimmenden

Willenserklärung, wodurch ihre Rechtsverhältnisse bestimmt werden"){9}.

Esta definição, em princípio simples, tem grande valor para a

nossa análise, pois nela já podemos encontrar os elementos básicos que

caracterizarão a concepção tradicional de contrato até os nossos dias:

(1) a vontade (2) do indivíduo (3) livre (4) definindo, criando direitos

e obrigações protegidos e reconhecidos pelo direito. Em outras pala-

vras, na teoria do direito, a concepção clássica de contrato está

diretamente ligada à doutrina da autonomia da vontade e ao seu

reflexo{10} mais importante, qual seja, o dogma da liberdade contratual.

* (8) Assim Couto e Silva, Perspectivas, p. 134.

(9) Apud Zweigert/Koetz, p. 6.

(10) Concordam Weil/Terré, p. 25, Rieg, p. 126, Larenz/AT, p. 35, Laufs, p. 255,

Raizer, p. 12, Almeida Costa, p. 77, Reale/Nova Fase, p. 87, Couto e Silva,

RT 655, p. 7, Gomes/Transformações, p. 9, porém, para os comparatistas

Zweigert/Koetz, p. 9, Koendgen, p. 119 e Kramer/Muenchener, p. 1090, os

dogmas teriam o mesmo nível, sendo a característica mais importante a

liberdade contratual, a qual não seria simples "reflexo" ou elemento do dogma

da autonomia da vontade. A tradição brasileira e francesa é a que seguimos. (p. 38)

Para esta concepção, portanto, a vontade dos contraentes, decla-

rada ou interna, é o elemento principal do contrato. A vontade

representa não só a genesis, como também a legitimação do contrato{11}

e de seu poder vinculante e obrigatório.

Tendo em vista o papel decisivo da vontade a doutrina, a

legislação e a jurisprudência, influenciadas por esta concepção, irão

concentrar seus esforços no problema da realização dessa autonomia

da vontade;{12} somente a vontade livre e real, isenta de vícios ou

defeitos, pode dar origem a um contrato válido, fonte de obrigações e

de direitos.

Nesse sentido, a função da ciência do direito será a de proteger

a vontade criadora e de assegurar a realização dos efeitos queridos pelas

partes contratantes. A tutela jurídica limita-se, nesta época, portanto,

a possibilitar a estruturação pelos indivíduos de relações jurídicas

próprias através dos contratos,{13} desinteressando-se totalmente pela

situação econômica e social dos contraentes{14} e pressupondo a existên-

cia de uma igualdade e liberdade no momento de contrair a obrigação.

Esta concepção clássica de contrato, individualista, liberal e

centrada na idéia de valor da vontade, influenciará o pensamento

brasileiro,{15} sendo aceita pelo Código Civil de 1917.{16}

Mas a concepção clássica de contrato não é fruto de um único

momento histórico, ao contrário, ela representa o ponto culminante

e aglutinador da evolução teórica do direito após a idade média e da

evolução social e política ocorrida nos séculos XVIII e XIX, com

a revolução francesa, o nacionalismo crescente e o liberalismo

econômico. A compreensão desta teoria clássica contratual exige,

portanto, que se analise igualmente as origens dessa concepção,

sempre tendo em vista o reflexo que estas influências teóricas e sociais

tiveram no nascimento da doutrina da autonomia da vontade (1.2).

* (11) Assim, Kramer/Muenchener, p. 1091 (ver § 145, 3, b).

(12) Concordam Zweigert/Koetz, p. 8.

(13) Nesse sentido Raizer, p. 12.

(14) Assim, o mestre de Porto Alegre, Couto e Silva/Perspectiva, p. 134.

(15) Veja sobre a repercussão do pensamento Filosófico-jurídico europeu no

pensamento jurídico brasileiro, a lição de Reale, Nova Fase, p. 219.

(16) Assim, Pontes de Miranda/Fontes, p. 377 e Couto e Silva/Perspectiva,

p. 137. (p. 39)

É necessário, igualmente, que se identifique que conseqüências

jurídicas se originaram, nos ordenamentos jurídicos de quase todos

os povos europeus e também entre nós, da aceitação desta concepção

clássica de contrato (1.3).

1.2 Origens da concepção tradicional de contrato

A concepção tradicional de contrato, segundo frisamos, está

intimamente ligada a idéia de autonomia da vontade, eis porque é

possível identificar suas origens analisando a evolução deste dogma

basilar do direito. Segundo doutrinadores franceses,{17} quatro são as

principais origens da doutrina da autonomia da vontade no direito:

a) O direito canônico - O direito canônico contribuiu decisiva-

mente para a formação da doutrina da autonomia da vontade e,

portanto, para a visão clássica do contrato, ao defender a validade e

a força obrigatória da promessa por ela mesma, libertando o direito

do formalismo exagerado e da solenidade típicos da regra romana.{18}

O simples pacto faz nascer a obrigação jurídica, como fruto do ato

do homem. É o direito canônico que vulgariza a fórmula ex nudo pacto

nascitur. Para os canonistas, a palavra dada conscientemente criava

uma obrigação de caráter moral e jurídico para o indivíduo. Assim,

livre do formalismo excessivo do direito romano, o contrato se

estabelece como um instrumento abstrato e como uma categoria

jurídica.{19}

* (17) Assim Weill/Terré, p. 50 sobre as origens da doutrina da autonomia da

vontade.

(18) Segundo Puig Peña, p. 2, o pactum ou conventio, no direito romano,

significava um simples acordo que por si só não gerava uma actio, nem

vínculo obrigacional, sendo necessário um plus (causa civilis) para se

transformar em contractus: a forma especial, ou mais tarde, a execução por

uma das partes. De outro lado, se Roma possuía um conceito mais objetivo

de contrato e diferenciado do atual, isto não impede que alguns doutrina-

dores visualizem na relação de forças entre o disposto na lex e as

instituições do ius (incluindo aqui os atos jurídicos) um conceito de

autonomia privada bastante semelhante ao atual, como espaço reservado

para a auto-determinação dos indivíduos, veja a controvérsia em Frezza, p.

481 e Carressi, p. 265.

(19) Assim concluem também Mazeaud/Mazeaud/Chabas, p. 53. (p. 40)

b) A teoria do direito natural - É na teoria do direito natural que

encontramos, porém, a base teórico-filosófica mais importante na

formação dos dogmas da concepção clássica: a autonomia da vontade

e a liberdade contratual. Como ensina Reale,{20} à luz do Direito Natural,

especialmente devido às idéias de Kant, a pessoa humana tornou-se um

ente de razão, uma fonte fundamental do direito, pois, é através de seu

agir, de sua vontade, que a expressão jurídica se realiza. Kant{21} chegaria

mesmo a afirmar que a autonomia da vontade seria "o único princípio

de todas as leis morais e dos deveres que lhes correspondem". Estas

idéias de Kant tiveram muita influência na Alemanha à época da

sistematização do direito e serão uma das bases da Willenstheorie,{22}

para a qual a vontade interna, manifestada sem vícios, é a verdadeira

fonte do contrato, a fonte que legitima os direitos e obrigações daí

resultantes, os quais devem ser reconhecidos e protegidos pelo direito.

Para Wieacker,{23} os pandectistas do século XIX, ao sistematizarem

a ciência do direito e os conceitos jurídicos, basearam-se na ética da

liberdade - e do dever de Kant. Para este famoso historiador do direito,

é na ideologia do jusnaturalismo que vamos encontrar a fonte do que

ele chama "paixão burguesa pela liberdade". Efetivamente, é no direito

natural que encontramos a base do dogma da liberdade contratual, uma

vez que a liberdade de contratar seria uma das liberdades naturais do

homem, liberdade esta que só poderia ser restringida pela vontade

(Wille) do próprio homem.{24} O próprio Kant{25} afirmada que as pessoas

* (20) Reale/Nova, p. 61.

(21) Kant, "Kritik der Praktischen Vernunft" apud Reale/Nova, p. 60.

(22) Assim concluem tb. Zweigert/Koetz, p. 8.

(23) Wieacker, p. 280.

(24) Concordam igualmente Zweigert/Koetz, p. 8, em interessante estudo. Ernst

Wolf relembra que o § 823 do BGB ao citar os bens e valores, os quais

lesados originam a pretensão de ressarcimento por ato ilícito no direito

alemão, inclui "a liberdade", como interesse e direito natural do homem.

Wolf, Ernst, "Vertragsfreiheit - eine Illusion?", FSKeller, p. 360.

(25) Kant/Grundlegung zur Methaphysik der Sitten, p. 375: "Man sah den

Menschen Durch seine Pflicht an Gesetze gebunden, man liess es sich aber

nicht einfailen, dass er nur seiner eigenen und dennoch allgemeinen

Gesetsgebung unterworíen sei, und dass er nur verbunden sei, seinen

eigenen, den Naturzweck nach aber allgemeinen gesetzgebenden Willen

gemaess zu handeln". (p. 41)

só podem se submeter às leis que elas mesmas se dão, no caso, o

contrato. Wieacker chega a considerar o jusnaturalismo, com as

influências por ele recebidas da tradição católica, como a força mais

poderosa no desenvolvimento do direito, depois do Corpus Iuris

Civile.{26} Mas não só as teorias ético-jurídicas tiveram influência na

formação de concepção clássica de contrato, também as teorias de

ordem política e econômica ajudaram a moldá-la.

c) Teorias de ordem política e a revolução francesa - Já se afirmou

que o direito moderno nasce com a Revolução Francesa,{27} neste sentido

queremos destacar a influência que a famosa teoria do contrato social

exerceu sobre o direito contratual. Esta teoria de Rousseau lança a idéia

do contrato como base da sociedade, sociedade politicamente organi-

zada, isto é, o Estado. Aqui vamos reencontrar o dogma da vontade livre

do homem, pois, segundo esta revolucionária teoria francesa, a auto-

ridade estatal tem o seu fundamento no consentimento dos sujeitos de

direito, isto é, os cidadãos. Suas vontades se unem (em contrato) para

formar a sociedade, o Estado como hoje o conhecemos. Nas palavras

célebres de Rousseau: "Já que nenhum homem possui uma autoridade

natural sobre o seu semelhante, e uma vez que a força não produz

nenhum direito, restam, portanto, os contratos (as convenções) como

base de toda a autoridade legítima no meio dos homens".{28}

Note-se que também aqui está presente a idéia de renúncia à parte

da liberdade individual. É necessário renunciar através do contrato

social, mas a própria renúncia é expressão do valor da vontade. O

contrato é, assim, não só a fonte das obrigações entre indivíduos, ele

é a base de toda a autoridade. Mesmo o Estado retira sua autoridade

de um contrato, logo a própria lei estatal encontra aí sua base. O

contrato não obriga porque assim estabeleceu o direito, é o direito que

vale porque deriva de um contrato. O contrato, tornando-se um a priori

do direito, revela possuir uma base outra, uma legitimidade essencial

* (26) Wieacker, p. 297.

(27) Assim Reale/Nova, p. 73.

(28) Nas palavras originais, Rousseau, p. 45, L. I., Cap. IV: "puisque aucun

homme n’a une autorité naturelle sur son semblable, et puisque la force ne

produit aucun droit, restent donc les conventions pour base de toute autorité

légitime parmi les hommes". (p. 42)

e autônoma em relação às normas: a vontade dos cidadãos.{29} A teoria

do contrato social conduz, portanto, à idéia de importância da vontade

do homem.{30}

Destaque-se, por fim, a maior realização da Revolução Francesa

no campo do Direito Civil, o Código Civil Francês de 1804. O Code

Civil, elaborado na época napoleônica, conjuga as influências indivi-

dualistas e voluntaristas da época com as idéias do Direito Natural

Moderno: tendo, segundo Reale,{31} remota fonte hobbesiana. Marco da

história do direito, esta codificação, que influenciada grande parte dos

ordenamentos jurídicos do mundo, coloca como valor supremo de seu

sistema contratual a autonomia da vontade, afirmando, em seu art.

1.134, que as convenções legalmente formadas têm lugar das leis para

aqueles que as fizeram.{32} Esta visão extremamente voluntarista do

direito contratual influenciará várias codificações, inclusive a nossa,

moldando para sempre a concepção clássica de contrato.

d) Teorias econômicas e o Liberalismo - As teorias econômicas

do século XVIII, em resposta ao corporativismo e as limitações

impostas pela igreja católica, propõem a liberdade como panacéia

universal.{33} Para estas teorias, é basicamente necessária a livre movi-

mentação das riquezas na sociedade.{34}

Uma vez que o contrato é o instrumento colocado à disposição

pelo direito para que esta movimentação aconteça, defendem a neces-

* (29) Assim Puig Peña, p. 3. Já o mestre alemão Coing/Rechtsphilosophie, p. 33,

observa que exatamente neste momento, o homem (Menschen) volta a ser

visto como cidadão (Bürger) e o direito dos homens (direito natural) vai

cedendo espaço para o direito dos cidadãos (direito civil ou bürgerliches

Recht, em alemão), direito dos iguais na sociedade civil.

(30) Assim Weil/Terré, p. 51.

(31) Reale, Nova Fase, p. 87 e Villey, p. 683.

(32) No original: "Art. 1.134 - Les conventions légalment formées tiennet lieu

de li à ceux qui les ont faites", nossa tradução no texto foi influenciada por

aquela de Reale, Nova Fase, p. 90, veja também sobre o sistema contratual

do Code Civil, Morin, Révolte, p. 13 a 17.

(33) Kramer/Krise, p. 22.

(34) Veja Amaral, Autonomia, p. 26 e tb. o excelente Atiyah, p. 277, o qual

destaca a importância da idéia de propriedade privada, a possibilitar essa

liberdade de trocas de mercadorias na sociedade. (p. 43)

sidade da liberdade contratual. Acreditava-se, na época, que o contrato

traria em si uma natural eqüidade, proporcionaria a harmonia social e

econômica, se fosse assegurada a liberdade contratual. O contrato seria

justo e eqüitativo por sua própria natureza. Na expressão da época: "Qui

dit contractuelle, dit juste".{35}

O modelo do synalagma serve como base para esta visão econô-

mica do contrato, a qual reafirmará ser este precipuamente um

instrumento de troca do "inútil" pelo "útil", visando a realização de

interesses individuais daqueles que contrataram. Note-se aqui uma

dupla função econômica do contrato: instrumentalizar a livre circulação

das riquezas na sociedade e ao mesmo tempo indicar o valor de

mercado de cada objeto cedido (sua nova "utilidade"). Evolui-se, assim,

para considerar o contrato menos um instrumento de troca de objetos,

mas sim uma troca de valores.{36}

No século XIX, auge do Liberalismo, do chamado Estado Moder-

no, coube a teoria do direito dar forma conceitual ao individualismo

econômico da época, criando a concepção tradicional de contrato,{37} em

consonância com os imperativos da liberdade individual e principal-

mente do dogma máximo da autonomia da vontade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário